Marcelo Caldi e Silvério Pontes
Repentina, a vida é um sopro. O ar que atravessou o trompete de Silvério Pontes é o mesmo que penetra o fole da sanfona de Marcelo Caldi. É o vento, invisível, a moldar a tessitura dos sons e dos encontros.
Silvério Pontes tocou durante 30 anos com o parceiro e ídolo Zé da Velha, referência obrigatória no trombone brasileiro. “A gente adorava estar cercado de músicos jovens, e aquele menino Marcelo Caldi era um deles, e chamou minha atenção, pela sua formação clássica, pela versatilidade de estilos que tocava no acordeom”, conta o trompetista.
Marcelo, por sua vez, ainda se lembra da emoção de ter subido pela primeira vez no palco ao lado da dupla Zé da Velha e Silvério Pontes, em 2011, na sede do Bola Preta, na Lapa, Rio de Janeiro. “O Zé da Velha tocou com o Pixinguinha, o Silvério tocou com o Zé e hoje sou eu quem toco com o Silvério. Imagina o que isso representa pra mim? Me traz o conforto de estar no caminho que escolhi, da linhagem musical que quero e preciso seguir”, resume.
O sanfoneiro fez parte do último registro de Zé da Velha e Silvério Pontes, o CD “Ouro e prata” (Lua Nova), de 2015. Em princípio, Caldi faria um “acordeom guia”, isto é, uma referência que não entraria na gravação, e serviria apenas para orientar o mestre Dominguinhos, o ilustre convidado do álbum, a colocar o instrumento de fole no choro “Músicos e poetas”, de Sivuca.
Era um momento especial, pois seria uma das últimas gravações de Dominguinhos, que estava em um estado delicado de saúde, vindo a falecer meses depois. O álbum “Ouro e prata” marca ainda 50 anos de carreira de Zé da Velha, que, logo após alguns anos, deixaria de fazer shows.
Aconteceu que Dominguinhos ouviu e apreciou demais a guia de Caldi. O mestre teria comentado a Silvério: “eu gostei muito desse acordeom, quem é esse garoto? Não apaga o acordeom dele, não, eu toquei aqui de um jeito que dá pra gente fazer junto”. Assim, a faixa ganhou duas sanfonas, a de Marcelo e a de Dominguinhos.
Silvério ligou para Marcelo e contou a novidade. Ambos choraram ao telefone. Dois chorões. Descobriram, ali, uma afinidade baseada não apenas numa admiração mútua, mas, sim, numa emoção, isto é: um desejo de seguir adiante numa mesma tradição que os atravessou, advinda dos séculos passados.
Os ventos sopram, e foi num show do Baile do Almeidinha, comandado por Hamilton de Holanda, que Silvério e Marcelo se reencontraram e começaram a trocar ideias sobre composição. A partir daí, selaram uma parceria prolífica, em aproximadamente 50 músicas, até agora. Dessas, selecionaram 10 para gravação, aqui apresentadas neste novo show do duo.
“Quando o Zé parou de tocar, apareceu o Marcelinho em minha vida, o que me revigorou como compositor”, afirma Silvério.
Já Marcelo se encanta com a vasta vivência do trompetista. “Ao pesquisar mais sobre a vida de Silvério, descobri um músico super eclético: tocou pop e reggae com o Cidade Negra, tocou na Banda Vitória Régia junto de Tim Maia, tocou muito choro e samba com Luiz Melodia, além da longa passagem pelas gafieiras...”, conta.
As composições da dupla integram o universo do choro brasileiro. Conforme Marcelo Caldi, “são músicas cantaroláveis, como são as melodias de choro do início do século XX. É uma clara inspiração nos grandes mestres”.
“A música boa tem de ter essa renovação na composição”, destaca Silvério.
As peças do álbum são uma ponte entre as gerações do choro, considerando a diferença de 20 anos de idade entre Silvério e Marcelo. Músicos experimentados em diversos estilos, é no berço do choro que a musicalidade de ambos aparece de modo mais autêntico, e se expande.
Fazendo soprar os ares da tradição, a dupla não poderia deixar de homenagear grandes compositores. A celebração está em “Ao mestre Cartola”, um samba-choro que alude às melodias sinuosas, características do mestre do samba; em “Dia de Domingos”, uma espécie de “xote chorado” em reverência a Dominguinhos; e em “Meneziana”, para o mestre da gafieira Zé Menezes, com quem a dupla teve oportunidade de tocar junto, em ocasiões distintas.
Destaque ainda a “Valsa para mamãe”, dedicada à mãe de Silvério, Lila Léa, e à mãe de Marcelo, Estela Caldi, inspirada nas antigas valsas de Chiquinha Gonzaga. “Viemos de famílias musicais, e nossas mamães são nossas heroínas”, diz Silvério.
O álbum abre ainda espaço para o bolero (“Bom dia com um bolero”), o maxixe (“Maxixe da bailarina”, “Quando o sapo pula”), o frevo (“Frevo de Ibitipoca”), a polca (“Polca polaquinha”), e, claro, o choro (“Casa do choro”, homenagem à abertura da escola na Rua da Carioca).
Do compilado deste álbum, saltam melodias claras e alegres, solares e dançantes, repletas de raro encanto, singeleza e frescor para os dias de hoje. A contribuição deste material talvez seja levar novos ares à linguagem contemporânea do choro, recolhidos lá do final do século XIX, quando as matrizes da música brasileira ganharam forma e começaram a soprar nos ouvidos de nossa gente.
Apresentações
Paraty
24 de junho | 19h
Casa de Cultura de Paraty